Os céus proclamam a glória de Deus!

D. Irineu Rezende Guimarães, OSB *

O Salmo 18 nos diz o quanto a natureza manifesta a perfeição divina: “Os céus proclamam a glória do Senhor e o firmamento a obra de suas mãos; o dia ao dia transmite esta mensagem a noite à noite publica esta notícia.” (Sl 18,2-3). Ele nos fala de um anuncio e de um conhecimento que são feitos sem os meios tradicionais de comunicação – a voz, a linguagem o discurso, e entretanto não são sem eficácia: “não são discursos frases ou palavras e não são vozes que possam ser ouvidas; seu som ressoa e se espalha em toda
a terra, chega até os confins do universo a sua voz;'' (Sl 18,4-5). Esta forma de comunicação que é feita ao
longo do tempo, de forma ritmada, irradia uma energia que toca a todos, durante e através de seu agir: "De um extremo do céu põe-se a correr e vai traçando seu rastro luminoso até o outro extremo e nada pode escapar ao seu calor” (Sl 18,7). Estes versículos nos ajudam a compreender alguns desafios da “Lectio Divina”. É certo que a “Lectio Divina” tem como ponto de partida a leitura de um texto que exige de nós concentração, atenção, mobilização de nossa inteligência. Mas a leitura do texto é apenas o começo: se nós falamos de “Lectio Divina” usando o adjetivo “divina” isto quer dizer também que não se trata de uma leitura comum, como outras leituras como por exemplo um jornal ou um romance. Ela tem a especificidade de ser uma leitura “divina”, significando este adjetivo tanto, leitura de coisas de Deus, como a leitura que o próprio Deus faz. A leitura aí intervem como a matéria dos sacramentos. A água para o batismo, o pão e o vinho para a eucaristia, o óleo para a confirmação. Como nos sacramentos, a matéria é transformada pelo Espírito, o mesmo ocorre na “Lectio Divina”. É Preciso ir além das palavras para penetrar no espírito do texto. O racionalismo é um perigo que ameaça a “Lectio Divina” transformando-a numa atividade simplesmente intelectual e mental. 

Para que esta leitura seja realmente divina, é preciso um outro modelo de comunicação diferente daquele que nós usamos, muito fundado na razão. A narrativa da visitação (Lc, 9-56)como outras narrativas bíblicas nos mostram um modelo de comunicação antes espiritual, fundado nas profundezas do ser, sem perder sua dimensão afetiva e humana. 

Duas mulheres que se encontram: a saudação de Maria toca as entranhas de Isabel e a enche do Espírito Santo. E as palavras que se seguem, sejam as ditas por Isabel, - “Bendita es tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre...” (Lc 1,42-45) - sejam as ditas por Maria – o “Magnificat” (Lc 1,46-55) -, são palavras proféticas, isto é, palavras inspiradas, ditas sob a ação do próprio Deus. Um outro exemplo desta comunicação das profundezas, é a profissão de fé de pedro (Mt 16,13-20), que proclama Jesus o Cristo, o filho do Deus Vivo (Mt 16,15). Jesus mesmo explicita a raiz da confissão do apóstolo Pedro: “Bem aventurado es tu Simão, filho de Jonas, porque não foi a carne ou o sangue que te revelaram isto e sim meu Pai que está nos céus.” Mt (16,17). 

O Saltério utiliza várias figuras para exprimir esta comunicação entre Deus e o homem, fundada no próprio modo de ser, de viver e de agir,além das palavras. Uma destas metáforas é a sede empregada para exprimir o desejo ardente de Deus: "assim como a corsa suspira pelas águas correntes, suspira igualmente a minha alma por vós, ó meu Deus! Minha alma tem sede de Deus e deseja o Deus vivo. Quando terei a alegria de ver a face de Deus?” (Sl 41,2-3); “sois vós ó senhor o meu Deus ! Desde a aurora ansioso vos busco! A minha alma tem sede de vós , minha carne também vos deseja como terra sedenta e sem água” (Sl 62,2); “Para vós minhas mãos eu estendo; minha alma tem sede de vós como terra sedenta e sem água” (Sl 142,6). A metáfora da sede exprime uma urgência, algo de que a nossa vida depende, ou algo que não podemos dominar pois é maior que nós. Falar da “Lectio Divina” como expressão de nossa sede de Deus, é situá-la num nível profundo de nossa alma, de nossas necessidades mais essenciais, que não podemos facilmente dispensar. 

Outra figura recorrente no Saltério para falar do diálogo entre o homem e Deus é a do peregrino e da peregrinagem. Vários salmos a mencionam. Há mesmo uma sessão do Saltério consagrada a salmos de peregrinagem. Alguns salmos colocam a questão da possibilidade e as condições deste encontro entre o homem e Deus : Senhor quem mora em vossa casa e em vosso Monte Santo habitará? (Sl 14,1); “Quem subirá até o monte do Senhor, quem ficará em sua santa habitação? (Sl 23,3). Outros exprimem a felicidade e alegria de percorrerem este caminho em direção ao santuário: “Felicidade e todo bem hão de seguir-me por toda a minha vida; e na casa do senhor habitarei pelos tempos infinitos (Sl 22,6); “recordo saudoso o tempo em que ia com o povo. Peregrino e feliz caminhando para a casa de Deus, entre gritos de louvor e alegria da multidão jubilosa.” (Sl 41,5); “que alegria quando ouvi que me disseram vamos à casa do Senhor”(Sl 121). Outros ainda experimentam o desejo profundo deste encontro: “Ao Senhor peço apenas uma coisa e é só isto que eu desejo; habitar no santuário do Senhor por toda a minha vida; saborear a suavidade do Senhor e contemplá-lo no seu templo.” (Sl 26,4); “Quão amável é, Senhor, a vossa casa, quanto a amo Senhor Deus do Universo, a minha alma desfalece de saudades e anseia pelos átrios do Senhor! Meu coração e minha carne, rejubilam e exultam de alegria no Deus vivo! ( Sl 83, 2-3). sabemos que após as destruições do Templo de Jerusalém (em 587 ou 586 AC pelos babilônios e em 70 pelos romanos), Israel precisou reler estes salmos que falam de uma peregrinação no sentido de um reencontro com a Palavra de Deus, tornada agora, nestas circunstâncias, uma espécie de santuário onde aquele que crê, tem acesso de forma mais fácil. Assim a “Lectio Divina” pode ser compreendida como habitar na Palavra do Senhor, fazendo-se hóspede das Sagradas Escrituras; mas também no sentido de deixar-se habitar pela Palavra, de permitir que a Palavra, se expanda em nós, de fazer dela seu hospede mais íntimo. Uma outra metáfora empregada no saltério para descrever este encontro íntimo com Deus ligada à peregrinação é a da adoração, de reconhecer o poder de Deus e glorificá-lo. Alguns salmos fazem mesmo a ligação entre adorar a Deus e acolher a sua Palavra. Assim o Salmo 28 começa por um convite a dar glória a Deus e adorá-lo: “Filhos de Deus tributai ao Senhor, tributai-lhe glória e poder!Dai-lhe a glória devida a seu nome; adorai-o com santo ornamento.” (Sl 28,1-2). Mas logo a seguir, se explicita o sentido desta adoração, “evocando a voz do Senhor”: “A voz do Senhor sobre as águas, sua voz sobre as águas imensas! Eis a voz do Senhor com poder! Eis a voz do Senhor majestosa , sua voz no trovão reboando!” (Sl 28, 3-4). A mesma relação, se estabelece no salmo 94, salmo com o qual a Igreja a todos os dias se propõe a começar o louvor da manhã: “Vinde exultemos de alegria no Senhor , aclamemos o rochedo que nos salva! Ao seu encontro, caminhemos com louvores e com cantos de alegria o celebremos!... Vinde adoremos e prostremo-nos por terra e ajoelhemos ante o Deus que nos criou!” (Sl 94,1-2.6). Esta adoração é também ligada a escuta da Palavra, quando o salmista coloca a questão : “Hoje se ouvirdes a sua voz?" (Sl 94,7d). Adorar, esta atitude onde o homem reconhece sua pequenez e proclama a grandeza de Deus, permite ao homem penetrar silenciosamente e humildemente no segredo íntimo de Deus. Não é mesmo o coração da "Lectio Divina", ler a palavra com a alma de joelhos e prostrada diante do grande mistério de amor do nosso Deus? 

O sabor e o gosto são também metáforas bastante presentes. “Suas palavras são mais doces que o mel, que o mel que sai dos favos” exclama o salmista fazendo o elogio da lei de Deus (Sl 18,11). “Saborear a suavidade do Senhor” (Sl 26,4) é seu mais ardente desejo. “Como é doce ao paladar vossa palavra, muito mais doce que o mel na minha boca.” (Sl 118,103). Saborear é também conhecer: não é por acaso que nas línguas latinas o verbo “sapere” saborear deu origem a palavra “sapientia”, sabedoria! Quanto a este aspecto a “Lectio Divina” se apresenta como uma oportunidade de saborear a Palavra de Deus de provar e ver como é bom o Senhor (Sl 33,9). 

O salmo 129 apresenta uma outra figura: a do vigia que espera a aurora: “No Senhor ponho a minha esperança, espero em sua palavra. A minha alma espera no Senhor mais que o vigia pela aurora, Espere Israel pelo Senhor mais que o vigia pela aurora” (Sl 129, 5-7), a ligação entre o vigia e e a Palavra é bem explicita pois ele espera na Palavra de Deus, e é nela que ele confia, o salmista pode vigiar como o vigia espera espera a aurora. A “Lectio Divina” assume aqui um sentido de espera: ler a Palavra é bem mais que apenas ler, ler a palavra é esperar a realização de uma promessa, para aquele que lê e também para todos. A “Lectio Divina” ganha uma dimensão escatológica, de antecipação e realização de um futuro. Assim podemos encontrar no Saltério imagens muito belas, como estas , para nos ajudar a compreender que tipo de comunicação a Palavra exige de nós. Estas metáforas, como imagens de movimento do espírito , têm um sentido mistagógico, isto é, que nos conduzem ao interior do mistério da palavra, bem mais forte que o fracionamento da “Lectio Divina" em etapas como a leitura,a meditação, a oração e a contemplação. Esta divisão a torna um pouco artificial e mecânica – quando se passa de uma a outra? - podendo nos induzir a um erro de relegar a oração e a contemplação aos momentos finais quando elas são as condições e o próprio modo de fazer a leitura do texto sagrado.

* Prior da Abadia Nossa Senhora, Tournay, França. Para o encontro dos oblatos da Abadia, nos dias 13 e 14 de outubro de 2012.

Um comentário:

  1. Em tempos em que as coisas se dão de maneira tão rápida e mecânica corremos o risco de fazer da oração e da meditação processos rápidos e mecânicos, sem a devida profundidade.

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